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Geena no Novo Testamento - [Sobre o Inferno 7/11]

Não vou relembrar os ensinamentos e o impacto de Jesus em seu tempo, porque acredito que é de conhecimento de todos. Só é importante registrar que usarei a teoria da Fonte Q e da precedência de Marcos para entender a composição dos Evangelhos. Ou seja, acredito que o Evangelho de Lucas e Mateus foram escritos com base no Evangelho de Marcos e um conjunto de ditos em aramaico que os eruditos chamam de Fonte Q ou Documento Q. Acredito também, que Mateus escreveu para cristãos judeus e Lucas para cristãos gentios.

Geena é o termo em grego equivalente ao Ge Hinnom, o Vale do Filho de Hinnom que vimos no Antigo Testamento. Note que Jesus se refere ao lugar em um contexto escatológico, e os autores dos Evangelhos deixam claro que ele está fazendo referencias a Isaias e Jeremias.

O termo é comum em Mateus e Marcos, raro em Lucas e ausente em João. Em Mateus e Marcos, dois evangelhos bem judaicos, o Ge Hinnom aparece varias vezes como lugar de punição, onde os injustos serão lançados. Marcos sempre diz que é melhor perder um membro do que o corpo inteiro na Geena. Uma diferença significativa: algumas copias de Marcos inclui o versículo de Isaias sobre como o verme não morre e o fogo não se apaga. (Isaías 66:24)

“Eu, porém, vos digo que qualquer que, sem motivo, se encolerizar contra seu irmão, será réu de juízo; e qualquer que disser a seu irmão: Raca, será réu do sinédrio; e qualquer que lhe disser: Louco, será réu do fogo do geena.” – Mateus 5:22

“Portanto, se o teu olho direito te escandalizar, arranca-o e atira-o para longe de ti; pois te é melhor que se perca um dos teus membros do que seja todo o teu corpo lançado no inferno. E, se a tua mão direita te escandalizar, corta-a e atira-a para longe de ti, porque te é melhor que um dos teus membros se perca do que seja todo o teu corpo lançado no geena.”. – Mateus 5:29-30

“E, se o teu olho te escandalizar, arranca-o, e atira-o para longe de ti; melhor te é entrar na vida com um só olho, do que, tendo dois olhos, seres lançado no fogo do geena” – Mateus 18:9

“E, se a tua mão te escandalizar, corta-a; melhor é para ti entrares na vida aleijado do que, tendo duas mãos, ires para o geena, para o fogo que nunca se apaga, Onde o seu bicho não morre, e o fogo nunca se apaga.” - Marcos 9:43 - 44

“E, se o teu pé te escandalizar, corta-o; melhor é para ti entrares coxo na vida do que, tendo dois pés, seres lançado no geena, no fogo que nunca se apaga, Onde o seu bicho não morre, e o fogo nunca se apaga.” - Marcos 9:45-46

“E, se o teu olho te escandalizar, lança-o fora; melhor é para ti entrares no reino de Deus com um só olho do que, tendo dois olhos, seres lançado no fogo do geena, Onde o seu bicho não morre, e o fogo nunca se apaga.” - Marcos 9:47-48

Jesus também condena os fariseus ao Ge Hinnom

“Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! pois que percorreis o mar e a terra para fazer um prosélito; e, depois de o terdes feito, o fazeis filho do geena duas vezes mais do que vós.” – Mateus 23:15

“Serpentes, raça de víboras! como escapareis da condenação do geena?” – Mateus 23:33

Lucas, como dito, é um Evangelho mais grego do que judaico. A palavra Geena, conceito judaico, aparece uma única vez em Lucas, e é possível reparar que o mesmo versículo é diferente em Mateus.

No Evangelho de Mateus, o corpo e a alma são lançados na Geena, mas no Evangelho de Lucas, o corpo é morto e depois a alma é lançada na Geena. Pode ser apenas uma forma de linguagem,  ou uma real diferença de conceito, mas deixa claro que existe uma diferença. E veremos mais a frente como isso pode ser significativo.

“E não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma; temei antes aquele que pode fazer perecer no geena a alma e o corpo” – Mateus 10:28

“Mas eu vos mostrarei a quem deveis temer; temei aquele que, depois de matar, tem poder para lançar no geena; sim, vos digo, a esse temei.” – Lucas 12:5


Outro livro extremamente judaico do novo testamento é a epistola de Tiago ( repare que na apresentação ela é direcionada as 12 tribos Israel), e é o único livro do Novo Testamento além dos evangelhos que usa o termo Geena.

“A língua também é um fogo; como mundo de iniquidade, a língua está posta entre os nossos membros, e contamina todo o corpo, e inflama o curso da natureza, e é inflamada pelo geena.” – Tiago 3:6

Ou seja, a Geena nos evangelhos está associada a uma punição profética, a mesma de Isaias e Jeremias, não existe evidencias para pensar que será logo após a morte.

Ressurreição dos Mortos - [Sobre o Inferno 6/11]


Nas palavras do amargurado Jó vemos o primeiro desejo humano bíblico pela ressurreição.

“Morrendo o homem, porventura tornará a viver? Todos os dias de meu combate esperaria, até que viesse a minha mudança. Chamar-me-ias, e eu te responderia, e terias afeto à obra de tuas mãos.” – Jó 14:14-15

Posteriormente nas imagens proféticas de Isaias, nos oráculos de Oseias, e no famoso vale de ossos secos de Ezequiel, vemos a sugestão de que Deus pode devolver a vida a Israel. Não algo literal a ser interpretado como a ressurreição dos mortos, mas uma ressurreição do povo como nação.

“Como a mulher grávida, quando está próxima a sua hora, tem dores de parto, e dá gritos nas suas dores, assim fomos nós diante de ti, ó SENHOR! Bem concebemos nós e tivemos dores de parto, porém demos à luz o vento; livramento não trouxemos à terra, nem caíram os moradores do mundo. Os teus mortos e também o meu cadáver viverão e ressuscitarão; despertai e exultai, os que habitais no pó, porque o teu orvalho será como o orvalho das ervas, e a terra lançará de si os mortos. Vai, pois, povo meu, entra nos teus quartos, e fecha as tuas portas sobre ti; esconde-te só por um momento, até que passe a ira. Porque eis que o SENHOR sairá do seu lugar, para castigar os moradores da terra, por causa da sua iniquidade, e a terra descobrirá o seu sangue, e não encobrirá mais os seu mortos.” – Isaias 26:17-21

“Então me disse: Profetiza sobre estes ossos, e dize-lhes: Ossos secos, ouvi a palavra do SENHOR. Assim diz o Senhor DEUS a estes ossos: Eis que farei entrar em vós o espírito, e vivereis. E porei nervos sobre vós e farei crescer carne sobre vós, e sobre vós estenderei pele, e porei em vós o espírito, e vivereis, e sabereis que eu sou o SENHOR. Então profetizei como se me deu ordem. E houve um ruído, enquanto eu profetizava; e eis que se fez um rebuliço, e os ossos se achegaram, cada osso ao seu osso. E olhei, e eis que vieram nervos sobre eles, e cresceu a carne, e estendeu-se a pele sobre eles por cima; mas não havia neles espírito. E ele me disse: Profetiza ao espírito, profetiza, ó filho do homem, e dize ao espírito: Assim diz o Senhor DEUS: Vem dos quatro ventos, ó espírito, e assopra sobre estes mortos, para que vivam. E profetizei como ele me deu ordem; então o espírito entrou neles, e viveram, e se puseram em pé, um exército grande em extremo.” – Ezequiel 37:4-10

“Vinde, e tornemos ao SENHOR, porque ele despedaçou, e nos sarará; feriu, e nos atará a ferida. Depois de dois dias nos dará a vida; ao terceiro dia nos ressuscitará, e viveremos diante dele.” – Oseias 6:1-2

Mas a ideia clara e literal de que um dia os mortos serão ressuscitados por Deus e levantarão de suas tumbas, aparece somente nos registros do período Intertestamentário. Note que em Sabedoria e Macabeus (inclusos nas bíblias católicas, mas não nas protestantes) só existe ressurreição para os justos.

“Mas as almas dos justos estão na mão de Deus, e nenhum tormento os tocará. Aparentemente estão mortos aos olhos dos insensatos: seu desenlace é julgado como uma desgraça. E sua morte como uma destruição, quando na verdade estão na paz! Se aos olhos dos homens suportaram uma correção, a esperança deles era portadora de imortalidade, e por terem sofrido um pouco, receberão grandes bens, porque Deus, que os provou, achou-os dignos de si. Ele os provou como ouro na fornalha, e os acolheu como holocausto. No dia de sua visita, eles se reanimarão, e correrão como centelhas na palha.” – Sabedoria 3:1-7

“Prestes a dar o último suspiro, disse ele: Maldito, tu nos arrebatas a vida presente, mas o Rei do universo nos ressuscitará para a vida eterna, se morrermos por fidelidade às suas leis. Após este, torturaram o terceiro. Reclamada a língua, ele a apresentou logo, e estendeu as mãos corajosamente. Pronunciou em seguida estas nobres palavras: Do céu recebi estes membros, mas eu os desprezo por amor às suas leis, e dele espero recebê-los um dia de novo. O próprio rei e os que o rodeavam ficaram admirados com o heroísmo desse jovem, que reputava por nada os sofrimentos. Morto este, aplicaram os mesmos suplícios ao quarto, e este disse, quando estava a ponto de expirar: É uma sorte desejável perecer pela mão humana com a esperança de que Deus nos ressuscite; mas, para ti, certamente não haverá ressurreição para a vida. ” – 2 Macabeus 7:9-14

A maioria dos eruditos acreditam que apesar do livro de Daniel ser canônico foi escrito no período intertestamentário, tem um estilo de escrita e uma teologia típica desse período. De acordo com Daniel, não só os justos ressuscitarão.

E naquele tempo se levantará Miguel, o grande príncipe, que se levanta a favor dos filhos do teu povo, e haverá um tempo de angústia, qual nunca houve, desde que houve nação até àquele tempo; mas naquele tempo livrar-se-á o teu povo, todo aquele que for achado escrito no livro. E muitos dos que dormem no pó da terra ressuscitarão, uns para vida eterna, e outros para vergonha e desprezo eterno. Os que forem sábios, pois, resplandecerão como o fulgor do firmamento; e os que a muitos ensinam a justiça, como as estrelas sempre e eternamente. E tu, Daniel, encerra estas palavras e sela este livro, até ao fim do tempo; muitos correrão de uma parte para outra, e o conhecimento se multiplicará.” – Daniel 12:1-4

Nos escritos de Josefo, vemos que no judaísmo existiam facções que acreditavam na ressurreição, como os fariseus; e facções que não acreditavam, como os saduceus. 

Essa ideia de ressurreição dos mortos do judaísmo é única. Na mitologia grega os deuses ressuscitavam assim como Jesus ressuscitou, mas uma a ressurreição escatológica de toda humanidade era um conceito inexistente. Vemos isso no discurso de Paulo no Areópago.

“E, como ouviram falar da ressurreição dos mortos, uns escarneciam, e outros diziam: Acerca disso te ouviremos outra vez.” – Atos 17

O Sheol encontra o Hades - [Sobre o Inferno - 5/11]

Hades da Septuaginta

A influencia das conquistas de Alexandre, o Grande, pelo mundo também afetou a Judéia, e a cultura dos filhos de Helen se encontrou com as tradições dos filhos de Abraão. O Helenismo chegou até a Judeia.

            Na biblioteca de Alexandria surgiu a Septuaginta, mais antiga tradução da Bíblia em grego (300 A.C – 100 A.C). A tradução se tornou muito importante, judeus como Flavio Josefo e Filo acreditavam que ela foi inspirada por Deus da mesma forma que o texto em hebraico. Quando os autores do Novo Testamento citam o Antigo, normalmente usam o texto da Septuaginta ao invés do texto em Hebraico.

            A Septuaginta sessenta e quatro vezes traduziu a palavra Sheol para Hades. Alguns termos do Antigo Testamento que sugeriam a ideia de mundo dos mortos, mas não usavam o termo Sheol, também foram traduzidos para Hades (Jo 33:22, 38:17; Pv. 2:18). Está era a forma mais fácil de fazer um grego entender o Sheol, pois o Hades era um mundo dos mortos, diferente do Sheol hebraico, mas era. 

Não é difícil imaginar que isso resultou um certo sincretismo. Quando um grego ou um judeu helenizado lesse a Septuaginta e ao mesmo tempo os textos da mitologia grega; e encontrasse a mesma palavra, Hades, entenderia como um só conceito. Ocorreu praticamente uma fusão entre o Sheol e o Hades.

Sheol e Hades nos Pseudepígrafos

O Livro de Enoque, é mais canônico dos livros pseudepígrafos. Varias copias do livro foram encontradas entre os manuscritos do mar morto, era claramente bem conhecido entre os judeus do período intertestamentário, e existem referencias claras ao Livro de Enoque no Novo Testamento (Judas 14-15; Judas 6; I Pedro 3:19,20). Como veremos, ele também beira a canonicidade por ter tido tamanha influencia no atual conceito de Inferno.

O “Inferno” aparece como a prisão dos Vigilantes, os Anjos que perverteram a humanidade a ponto de gerarem filhos com humanas (Genesis 6:1-4).

“Então, eles serão levados ao mais profundo abismo de fogo em tormentos, e no confinamento eles serão trancados para sempre. Imediatamente após isso, junto com eles, fogo e perecimento; eles estarão confinados até a consumação de muitas gerações. Destrua todas as almas viciadas em prostituição, e a prole dos Vigilantes, porque eles foram tiranos sobre a terra.” – Enoque 10:16-18

No Livro de Enoque possível ver que o Sheol era dividido em três separações

“Naquele tempo portanto eu inqueria a respeito dele, e a respeito do grande julgamento, dizendo, Por que um está separado do outro? Ele respondeu, Três separações foram feitas entre os espíritos dos mortos, e assim os espíritos dos justos foram separados. Ou seja, por um  abismo, pela água, e pela iluminação. E da mesma forma todos os pecadores são separados quando morrem, e são enterrados na terra; o julgamento não os surpreenderá em vida.” – 1 Enoque 22:9-10

“Então eu disse: ‘Qual o proposito da ilha dos abençoados, que está completamente cheia de arvores, e dos vale amaldiçoado no meio delas?’. Então Rafael, um dos anjos santos que estava comigo, me respondeu, e disse para mim: ‘Esse vale amaldiçoado, é para todos os que são amaldiçoados para sempre. Aqui serão ajuntados todo aquele que fala com a boca contra o Senhor – palavras que não são apropriadas, e dizem coisas duras contra Sua Gloria. Aqui eles serão ajuntados, e aqui será o lugar do julgamento deles.’” – Enoque 27:1-2

Dr. Martha Himmelfarb de Princeton sobre o “Inferno” de Enoque

“As associações de fogo com o Ge Hinnom precedem seus desenvolvimento no Inferno. A evidencia mais antiga de crença no Ge Hinnom como um local de punição perpetua é I Enoque 27, parte de uma viagem cósmica no Livro dos Vigilantes. Apesar do Ge Hinnom não ser mencionado, essa parte da viagem reflete a geografia de Jerusalém, e é claro que o ‘vale amaldiçoado’ que Enoque vê não é outro se não o Vale de Hinnom.”

Um livro posterior, Apocalipse de Sofonias, registra duas localizações separadas uma para os justos e outras para os injustos, uma para recompensa e outra para sofrimento. No livro de Sofonias aparece até mesmo o barqueiro do Hades dos gregos.

“Triunfo, prevalece porque você prevaleceu e triunfou sobre o acusador, e você se ergueu do Hades e o abismo. Você irá cruzar sobre a travessia” – Apocalipse de Sofonias 7:9

“Você escapou do abismo e do Hades, você agora irá cruzar sobre  travessia... então ele correu para todos os justos, ou seja, Abraão, Isaque, Jacó, Enoque, Elias e Davi.” – Apocalipse de Sofonias 9:4-5

Hades na Mitologia Grega - [Sobre o Inferno - 4/11]

Pra entender o “Inferno” do cristianismo não bastam apenas textos bíblicos. A mitologia grega influenciou consideravelmente a visão de vida após a morte dos antigos e é necessário entende-la pra compreender  como surgiu o “Inferno”.

A mitologia grega era um conjunto de narrações míticas originalmente mantidas pela tradição oral e preservadas até os dias de hoje pela literatura de autores como Homero e Hesíodo. 

            Entre os vários deuses existia Hades, deus dos mortos, que reinava sobre o submundo. Seu reino era cercado de água. Após a morte, o grego cruzava o rio Styx na barca de Caronte e chegava em um lugar conhecido como Campos Asfódelos. Os Asfódelos era um local de apatia onde os mortos se esqueciam de quem eram até chegarem na próxima etapa da jornada.

Continuando a viagem, o defunto chegava numa bifurcação onde seria julgados pelos três juízes, Minos, Radamanto e Éaco. Se o desencarnado tivesse sido extremamente mau, seria enviado ao Tártaro; se tivesse realizados atos heroicos ou sido extremamente bom, seria enviado aos Campos Elísios; se não tivesse sido extremamente bom ou extremamente mau, voltava aos Campos Asfódelos.

Os Campos Elísios são sempre retratados como um lugar paradisíaco. Virgílio, um poeta romano que participou no registro dos mitos gregos, escreveu que os mortos poderiam reencarnar após beber a água do rio Lete.

O Tártaro sempre aparece como o abismo mais profundo existente no mundo, usado como uma masmorra de tormento e sofrimento. Mais de uma vez na mitologia grega, deuses que perdiam as guerras ou deuses rebeldes eram aprisionados no Tártaro. Virgílio escreveu que o Tártaro era um lugar gigantesco rodeado pelo rio de fogo Flegetonte, cercado por tripla muralha que impede a fuga dos pecadores. 

Note como essa descrição de mundo dos mortos se parece muito mais com o pós vida do gato Tom, do que o Sheol do Antigo Testamento. 

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